sábado, 12 de março de 2011

A defesa do poeta - Natália Correia


A defesa do poeta


- Natália Correia

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos fel...izes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante em minha defesa

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde se possa escrever:
Ó subalimentados do sonho,
a poesia é para comer !
_________

*Natália Correia, poeta açoreano/portuguesa.

** poema enviado pelo amigo, poeta e artista plástico Rômulo Pinto Andrade - Brasília, DF :
"Ouvi Natália Correia na casa de Amália Rodrigues declamando esse poema num sarau em Lisboa com o amigo Vinícius de Moraes, 1968. Soberba."
http://pintoandrade.multiply.com

*** imagem : Natália Correia - Parque dos Poetas - Oeiras, Portugal
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